Observatório de Aves
Pontos de Interesse
Embarcadouro da Torre
Pequenas estruturas de acostagem surgem em grande número nas margens do rio Lima ao longo do nosso percurso. A sua localização é influenciada pelas condições de acesso e ancoragem ditadas pelas características do leito e das margens, bem como pela necessidade das populações ribeirinhas no que concerne ao transporte fluvial. Muitas vezes estes pontos de acostagem encontravam-se associados a locais de travessia do Lima que ligavam aglomerados populacionais importantes. Estes cais ou embarcadouros seculares correspondem, na sua maioria, a estruturas palafíticas, constituídas por estacarias, plataformas flutuantes e postes de amarração. Alguns possuem rampas de acesso à margem.
Considerando que as condições de navegabilidade do rio Lima se alteraram substancialmente ao longo do século XX, será importante referir que em séculos anteriores o rio era navegável desde Arcos de Valdevez, onde é conhecida a importância do embarcadouro da Jolda (Santa Madalena), até à sua foz em Viana do Castelo. Sobre a navegabilidade do Lima na centúria de setecentos, é elucidativa a resposta ao inquérito das Memórias Paroquiais de 1758, respeitante à paróquia de Cardielos: “O rio Lima […] dos Arcos athé Viana distancia de coatro para sinco legoas hé rio manço, quieto, e andam barcos para sima e para baixo com carregação…” (Capela, José Viriato, 2005, p. 427).
Dos principais ancoradouros situados nas margens do rio Lima partiam os água-arriba, embarcações tradicionais que asseguravam a ligação entre margens e o transporte de pessoas e carga para as duas feiras mais importantes da região do vale do Lima: a Feira de Ponte e a Feira de Viana. Os compartimentos disponíveis eram ocupados pelos animais, pelas mercadorias e pelas pessoas. O escoamento comercial da madeira e do vinho verde produzidos no vale do Lima contava com o apoio indispensável destes barcos. No sentido oposto, o sal, a cal, os adubos, o sulfato e o enxofre eram fornecidos às comunidades agrícolas por via fluvial.
Uma pintura de António Silva Porto, A Barca de passagem, documenta esta realidade num antigo embarcadouro localizado Serreleis, que poderemos supor tratar-se do Barco do Porto, localizado no limite entre esta freguesia e a de Cardielos. Apresentado na 2ª Exposição de Belas-Artes promovida pelo Grémio Artístico em 1892, o quadro retrata a travessia do Lima, num cenário onde uma barqueira, com um traje típico do Minho, afasta a barca com uma vara, transportando para a outra margem um carro de bois carregado de feno.
Barca de passagem em Serreleis (Minho), 1892
Óleo sobre tela 133x200 cm. Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves.
Para Ribeiro Arthur, militar, escritor e pintor, que esteve em Serreleis com Silva Porto, este quadro é: “Um flagrante bocado dos virentes campos do nosso Minho. Conheço bem o logar; foi mesmo ao meu lado que Silva Porto fez o seu esboçeto, largo, magistral, e de uma palpitante verdade!”
Ao longo deste percurso ribeirinho, irá cruzar-se com seis destes embarcadouros históricos, muitos ainda plenamente funcionais. Contamos-lhe agora um pouco da história de cada um deles.
Desde o embarcadouro do Pinheiro, o primeiro deste percurso se realizado de jusante para montante, localizado na antiga freguesia da Meadela, passava a barca para Darque. A antiguidade deste cais pode ser inferida por nela convergir uma via medieval que passa junto à Casa de Paredes (datada de finais do século XV, inícios de XVI) e na ponte medieval do Arco, em Perre (Franco Pires, Fabíola, 2015). Sobre esta via refere Almeida Fernandes, em 1977, que ainda se podiam ver vestígios de calçada romana entre a capela de S. Vicente e o Calvário, hoje completamente desaparecidos (Fernandes, Almeida, 1994, p. 105-106).
O sugestivo topónimo do lugar de Tira Vau indicia a existência de um outro ponto de travessia do rio Lima, embora a estrutura existente na atualidade remonte apenas a finais do século XX. Passar a vau designa a possibilidade de atravessar uma linha de água a pé ou a cavalo. O “vau” corresponde a uma secção do leito de pouca profundidade. A topografia do leito do rio Lima terá certamente sofrido oscilações de profundidade por movimentação de areias, o que poderá explicar o surgimento deste topónimo, cuja génese desconhecemos. A perpetuação da relação das populações com o rio fez com que o aumento da profundidade deste sector do leito junto à margem, em virtude da prática de extração de areia que aqui decorreu até ao inicio da década de noventa do século passado, fosse aproveitado para a criação de um cais, através da colocação de estruturas palafíticas em madeira, recuperando uma tradição construtiva secular.
O lugar de Barco do Porto, em Cardielos, como a própria expressão toponímica sugere, constituía um embarcadouro de grande importância no transporte de pessoas entre ambas as margens do rio. Até ao século XIX, uma barcaça era utilizada para a travessia de carros de tração animal, mesmo carregados, e até automóveis. A sua existência encontra-se documentada, pelo menos, desde o século XV. Supõe-se, no entanto, que seja muito anterior, provavelmente pré-romana, por se encontrar no alinhamento de eixos de acessibilidades naturais, ligando vales e portelas.
Escassos são os elementos documentais que nos permitem reconstituir a história do “Barco do Porto”, à exceção de escrituras de transmissão dos direitos de passagem, que nos indicam os nomes das famílias que os detiveram. Sabemos que, em finais do século XVI, pertenciam a descendentes da linhagem Mendes (Viana, 2005). Os direitos sobre o barco de passagem e propriedades conexas, foram transacionados por numerosas famílias ao longo do século XVII e XVIII, destacando-se a linhagem de Quesado Jácome.
A escritura pública da aquisição da quinta e exploração agrícola localizada no lugar de Barco Porto e dos direitos de passagem associados, adquiridos em 1873 por António Fernandes Lajoso, carpinteiro em Serreleis, oferece-nos um quadro detalhado da paisagem rural desta área ribeirinha, bem como uma interessante descrição das embarcações utilizadas para realizar a travessia do rio:
“Um lugar e casa onde vivem (o vendedor e família) no sítio do barco do Porto, da freguesia de Cardielos, que se compõem de casas altas e baixas, cobertos, cortes, largar, espigueiro, eira de terra, poço de água, estanca-rios, terra lavradia, vinha e árvores de fruto, mato e pinheiros […] bem assim a propriedade do barco do Porto e o direito de passagem no Rio Lima para a margem esquerda da freguesia de Vila Franca […], bem como uma barca e um barco de madeira que servem para a mesma passagem, e um barco de água acima com os seus respectivos aprestos; e assim como os tinham e possuíam com as suas entradas, servidões e respectivos direitos… sendo o lugar e casas pela quantia de duzentos e cinquenta mil reis, e o direito de passagem e respectivos barcos pela quantia de duzentos e cinquenta mil reis, o que tudo faz o total de setecentos mil reis, livres de todas as despesas para eles vendedores…” (Arquivo Distrital de Viana do Castelo, Livro de Notas n.º 91, fl. 44, do tabelião João Filipe de Castro apud: Viana, 2005, p. 171 – 170).
Atente-se nesta transcrição à referência ao “barco de água acima”, mais especificamente designado por barco de água-arriba. Estas embarcações tradicionais do rio Lima possuíam cerca de 13,50 metros de comprimento, 2 metros de boca e 0, 80 metros de pontal. Os exemplares de maior dimensão chegaram a medir 22 metros de comprimento. Esta embarcação de formato alongado e pequeno calado, possui casco trincado (com sobreposição das tábuas, à semelhança da técnica de construção do tabuado dos barcos vikings) e enverga vela de pendão, quadrangular. A análise das características e técnicas construtivas dos barcos água-arriba coloca-nos a possibilidade de estes revelarem influência das embarcações nórdicas, que poderão ter sido recebidas no século X, durante os breves anos das invasões normandas ou vikings (966-971) no Noroeste da Península. Note-se que, à semelhança das primeiras, na construção dos água-arriba primeiro dava-se a forma ao tabuado trincado e só depois se colocava o conjunto de balizas que formam o esqueleto do navio.
Os água-arriba, utilizados nas deslocações fluviais no troço navegável do rio Lima desde Viana do Castelo até Ponte da Barca, aproveitavam a força das marés, correntes e ventos favoráveis, sendo guiados pela vara dos barqueiros. A vazante e os ventos do quadrante Leste auxiliavam a descida do rio. A preia mar e os ventos do Norte enfunavam as velas quadrangulares rio acima.
Desde a marginal ribeirinha de Lanheses avista-se o Lugar da Passagem, na freguesia de Moreira de Geraz do Lima. Este lugar de cruzamento do rio Lima possui um significado histórico que atravessa milénios. Entre Lanheses e o Lugar da Passagem, na margem oposta, encontra-se um eixo de travessia fluvial utilizado, pelo menos, há 2400 anos, conforme comprovam duas pirogas monóxilas, datadas entre os séculos 4º e 2º a.C., descobertas e recuperadas entre 2002 e 2003 nesta secção do rio. Uma destas pirogas apresenta diversas particularidades construtivas que são típicas das técnicas de construção naval utilizadas no Mediterrâneo na antiguidade clássica, desde a Idade do Bronze. A extremidade da proa possui o formato de um bico ou focinho, presumivelmente de um animal aquático, como um golfinho, representação que é reforçada pela existência de um olhal circular que atravessa de lado a lado o respetivo maciço. Este olhal, além do seu significado estético-funcional, evoca uma representação zoomórfica, podendo prefigurar um golfinho, conhecido por ser amigo e protetor dos homens do mar, certamente então bem conhecido por frequentar as águas do rio Lima nesta zona – na época seguramente muito menos assoreada e, portanto, sob maior influência oceânica do que hoje em dia.
Todos estes indícios apontam para que a barca da passagem tenha aqui circulado durante a ocupação romana e ao longo da Idade Média, sendo utilizada pelos peregrinos que rumavam a Santiago de Compostela.